Legislação Específica Para Determinadas Raças (BSL)

Rottweiler Com Rapariga

Introdução

O direito à igualdade perante a lei e o direito à não-discriminação são direitos fundamentais em qualquer sociedade que se pretenda justa e democrática. Tal como é inaceitável a existência de leis que discriminem humanos com base na raça, deveria ser igualmente inaceitável a existência de leis que discriminem animais apenas com base na sua raça. Contudo, infelizmente, são cada vez mais os países com Legislação Específica Para Determinadas Raças de Cães (BSL, Breed Specific Legislation), incluindo Portugal.

Esta legislação discrimina os cães pelo simples facto de pertencerem a uma raça ou mistura de raças consideradas "potencialmente perigosas", colocando restrições alargadas à detenção e circulação destes cães. Em alguns países, chega-se mesmo a proibir por completo a existência de determinadas raças.

Em Portugal, as restrições incluem a obrigatoriedade de os cães circularem na via pública de trela e açaime. Infelizmente, o açaime tem um efeito perverso, pois confere uma aparência violenta ao cão e gera receio nas pessoas. Por outro lado, o açaime dificulta muitas vezes a respiração dos cães e torna-os completamente vulneráveis ao ataque de outros cães que circulem soltos e/ou sem açaime (que quase nunca são alvo de fiscalização por parte das autoridades).

No caso específico português, esta legislação discriminatória não seria sequer "necessária" se fosse cumprida a legislação anterior, a qual obriga a que todos os cães que se encontrem na via pública ou lugares públicos sejam conduzidos à trela ou estejam açaimados. Contudo, com a aparente conivência das autoridades, muitas pessoas (senão mesmo a maioria) deixam circular os seus cães sem estarem atrelados, colocando outras pessoas, outros animais e o próprio animal numa situação de risco completamente desnecessário.

Primeiro, levaram os comunistas
e eu nada disse, porque não era comunista

Depois, levaram os sindicalistas
e eu nada disse, porque não era sindicalista

Depois, levaram os judeus
e eu nada disse, porque não era judeu

Depois, levaram-me a mim
e já não havia ninguém que me pudesse defender

Martin Niemöller

Uma Lei Sem Justeza Nem Fundamento

Infelizmente, os legisladores parecem completamente alheios às causas de comportamentos violentos, optando antes por estabelecer uma lista de raças potencialmente perigosas. Embora seja inegável que a raça de um cão contribui para o seu carácter, não há nenhuma prova científica de que seja possível aferir a perigosidade de um cão pela sua raça ou por outras características físicas1. Exemplo disso mesmo é o facto de a lista de raças potencialmente perigosas variar de país para país.

Existiria coerência em aplicar determinadas restrições à detenção de cães com base no porte do animal, pois os cães de grande porte têm o potencial para causar ferimentos mais graves a pessoas ou outros animais. Contudo, não é justo nem sensato fazer-se distinções exclusivamente com base na raça. Por outro lado, pode ser difícil determinar com exactidão a raça ou mistura de raças de determinado animal, o que faz desde logo desta lei uma má lei, por ser passível de aplicações arbitrárias. Ou seja, a aplicação da lei ficará, em grande medida, ao critério de quem a aplica, podendo ser aplicada a cães de outras raças ou sem raça definida, desde que a autoridade considere que a tipologia do animal é semelhante à de uma das raças potencialmente perigosas. Obviamente, a existência de leis arbitrárias não é uma situação admissível num estado de direito.

Um Círculo Vicioso

Naquilo que constitui um círculo vicioso, a existência de legislação discriminatória conduz ao aumento da cobertura sensacionalista e tendenciosa de ataques de cães "potencialmente perigosos" por parte dos meios de comunicação social, o que contribui para acentuar um receio generalizado na população. Este receio infundado, por sua vez, traduz-se numa maior base de apoio a leis específicas para determinadas raças, leis essas que se vão assim tornando cada vez mais restritivas, até ao ponto de decretarem o fim de determinadas raças. E assim se vai diabolizando cada vez mais estes cães, ao mesmo tempo que nos absolvemos de toda e qualquer culpa ou responsabilidade.

À medida que a censura social relativamente a estes cães e às suas famílias aumenta, os cães destas raças são cada vez mais abandonados, vítimas de maus-tratos alimentados pelo medo e preconceito ou entregues em canis municipais para serem abatidos. Apenas as pessoas com más intenções os procuram cada vez mais para fins ilícitos, pois esses não se preocupam minimamente em cumprir as restrições legais.

O Verdadeiro Problema e os Seus Responsáveis

Deveria ser óbvio que os principais responsáveis pela existência de cães perigosos são as pessoas negligentes que os têm a seu cuidado, ignorando o dever de educar e sociabilizar os seus animais. Deveria ser óbvio que, independentemente da sua raça, qualquer cão que seja mal tratado, que não seja educado ou que seja treinado para atacar pode ser perigoso ou potencialmente perigoso.

A raça ou as raças "problemáticas" em determinada altura tendem a ser aquelas que são mais populares entre os indivíduos que tratam os animais de forma negligente, muitas vezes para fins ilícitos. Cuidado Com a BSL Se extinguirmos determinada raça, estes indivíduos depressa encontrarão outra raça ou mistura de raças que satisfaça os seus intuitos. No limite, poderemos banir progressivamente todas as raças, mas o problema persistirá enquanto deixarmos que indivíduos sem escrúpulos possam ter cães e usá-los como meios para qualquer fim.

Os cães classificados como potencialmente perigosos não são perigosos nem maus por natureza, como se demonstra facilmente pelos milhares de cães destas raças que vivem perfeitamente integrados em famílias humanas uma vida inteira. Contudo, à semelhança de qualquer outro cão, estes cães apenas deviam ser mantidos por pessoas responsáveis. Da mesma forma que os filhos de pais negligentes e irresponsáveis se tornam frequentemente em marginais, também os cães que não recebem educação nem são sociabilizados têm maior potencial para atacar pessoas ou outros animais. Mas, tal como não vamos proibir toda a gente de ter filhos por haver muitos pais irresponsáveis, também não faz sentido proibir determinadas raças nem puni-las pela irresponsabilidade de alguns humanos.

Infelizmente, há diariamente muitos ataques de cães à integridade física de pessoas e outros animais. Contudo, esses ataques não são normalmente notícia, porque não causam mortes humanas, ou porque os atacantes são cães de raça indeterminada ou de raças consideradas dóceis. Por outro lado, não se toma em consideração o número total de cães de uma raça, quando se contabiliza o número de ataques dessa raça. Por exemplo, dado o elevado número de cães de raças consideradas potencialmente perigosas que existe em Portugal, o número de ataques a pessoas por cães dessas raças é, estatisticamente, muito reduzido (o que espelha bem a falta de senso desta legislação).

Se olharmos para o passado recente, recordar-nos-emos de que o cão "maligno" de há alguns anos era o Dobermann. Nessa altura ninguém falava nos Pit Bull nem nos Rottweiler. Agora que os Dobermann "passaram de moda", já ninguém fala deles e nem sequer estão incluídos na lista de raças potencialmente perigosas. Ou seja, a legislação específica para determinadas raças reflecte as tendências do momento e, ironicamente, reflecte sobretudo as preferências de quem utiliza os animais para fins errados.

Pena de Morte

Lamentavelmente, de acordo com a legislação portuguesa, a consequência de um ataque grave por parte de um cão a uma pessoa é sempre a pena de morte para o animal (independentemente das circunstâncias do ataque). Por seu lado, os detentores dos animais — na maioria dos vezes os principais responsáveis pela tragédia — saem virtualmente sempre impunes e podem continuar a ter os animais que entenderem e a tratá-los como entenderem.

Conclusão

A forma mais eficaz de oferecer protecção contra cães potencialmente perigosos ou perigosos é através de legislação que promova o cuidado responsável dos animais. Uma legislação que puna o responsável pelo cão, em vez de punir o cão, é muito mais eficaz na prevenção de ataques. Uma legislação bem aplicada que não faça discriminação entre raças é a solução mais justa e eficaz para o problema dos cães efectivamente perigosos.

A legislação específica para determinadas raças não se baseia nem na justiça nem na necessidade de proteger os humanos e os outros animais. Trata-se apenas de um exercício de discriminação sem sentido que está a condenar muitos e muitos animais ao abandono, ao sofrimento e à morte, e a prejudicar as famílias responsáveis que têm estes animais a seu cuidado.

1. Federation of Veterinarians of Europe, FVE Position On Dangerous Dogs, 2000